
Como os pesquisadores do Einstein descobriram novo vírus no Brasil
O achado científico ocorreu graças ao desenvolvimento de um teste inovador capaz de diagnosticar várias doenças causadas por este e outros tipos de micro-organismo
Por Fábio de Oliveira, da Agência Einstein
O Ministério da Saúde acaba de confirmar a ocorrência de uma morte provocada por febre hemorrágica brasileira. Causada pelo Arenavírus, a enfermidade é considerada extremamente rara e de alta letalidade. O paciente era natural de Sorocaba, interior de São Paulo, e apresentou os primeiros sintomas no dia 30 de dezembro do ano passado. Os sinais eram febre, mal-estar, dor de garganta e de estômago, entre outros. Entre o início da apresentação dos sintomas e a morte do paciente passaram-se doze dias. O homem passou por três hospitais, localizados em Eldorado e Pariquera-Açu, no Vale do Ribeira, em São Paulo, e Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP), na capital paulista. O Ministério da Saúde já comunicou o fato à Organização Mundial de Saúde e à Organização Pan-Americana de Saúde.
Segundo o Ministério, a confirmação deste único caso é considerada um evento de saúde pública grave, pois no Brasil a primeira e única vez em que foi relatado casos de febre hemorrágica provocados por vírus do gênero Arenavírus foi no início da década de 1990. Neste evento de saúde foi identificado um novo vírus da família Arenaviridae, do gênero Mammarenavirus, o vírus Sabiá. “Considerando a família, este vírus pode apresentar alta patogenicidade e letalidade. Este fator representa um risco significativo para a saúde pública, ainda que nenhum caso secundário tenha sido identificado até este momento da investigação.”, diz a nota divulgada pelas autoridades.
Não se sabe a origem da contaminação do paciente. Segundo o Ministério da Saúde, possivelmente a contaminação se dê por meio da inalação de partículas formadas a partir de urina, fezes e saliva de roedores infectados. “A transmissão do arenavírus de pessoa para pessoa pode ocorrer quando há contato muito próximo e prolongado ou em ambientes hospitalares quando não usados os equipamentos de proteção, por meio de contato com o sangue, fezes, saliva, vômito, sêmen e outras secreções e excreções”, descreve o ministério.
Histórico
De acordo com a nota, em 17 de janeiro de 2020 a Secretaria de Vigilância em Saúde recebeu, às 14h08, a notificação de um caso confirmado para o gênero Mammarenavirus, com aproximadamente 90% de similaridade com a espécie Sabiá. A identificação do micro-organismo foi feita pela equipe do Laboratório de Técnicas Especiais – LATE do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo. Os médicos identificaram um novo vírus do gênero Mammarenavírus, da família Arenaviridae, ainda sem espécie definida. Posteriormente, o Laboratório de Investigação Médica do HC/SP também confirmou o mesmo agente por meio de uma técnica chamada metagenômica viral e o Instituto Adolfo Lutz, após amplificação de RNA viral.
Na literatura médica, há descrição de 4 casos humanos de febre hemorrágica brasileira provocados pelo gênero Mammarenavirus. O primeiro caso ocorreu por infecção natural, ou seja, a partir de um reservatório, na década de 1990 no estado de São Paulo, e deu a origem a um segundo caso que ocorreu em ambiente laboratorial ao processar amostra do primeiro caso. O primeiro caso era uma mulher, de 25 anos, que relatou viagem para o município de Cotia no estado de São Paulo, 10 dias antes ao início dos sintomas. Após o óbito, foi identificado por meio de testes imunológicos e virológicos que se tratava de um novo vírus, da família Arenaviridae, denominado de vírus Sabiá, referente ao nome do bairro onde a paciente provavelmente se infectou. O segundo caso foi um técnico de laboratório de 39 anos, que foi infectado acidentalmente, durante o processamento da amostra clínica do primeiro caso. O paciente sobreviveu e a confirmação foi comprovada por meio da soroconversão para o vírus Sabiá. Há um terceiro relato de caso de vírus Sabiá, porém ocorrido em ambiente laboratorial dos Estados Unidos, em um virologista que provavelmente se infectou durante procedimentos laboratoriais. O quarto caso de vírus Sabiá descrito na literatura ocorreu em 1999 por infecção natural. Trata-se de um paciente de 32 anos, do sexo masculino, operador de máquina de grãos de café, residente de área rural do Espírito Santo do Pinhal, no estado de São Paulo. Após 7 dias de hospitalização, o paciente morreu.
Os roedores silvestres são os reservatórios do vírus. O período de incubação – tempo entre a exposição do vírus até o início dos sintomas – é geralmente é de 6 a 14 dias, podendo variar de 5 a 21 dias. A doença normalmente cursa entre 6 a 14 dias e evolui com manifestações neurológicas e grave comprometimento hepático resultando em hepatite, podendo o paciente apresentar prostração extrema, dor abdominal, hiperemia conjuntival, rubor em face e tronco, hipotensão ortostática, hemorragia petequial, conjuntival e outras mucosas, hematúria, vesículas em pálato, linfadenopatia generalizada e encefalite.
Os Arenavírus são agentes infecciosos classificados como nível de biossegurança 4, o mais alto de todos. O Ebola, por exemplo, é classificado como nível de biossegurança 4. Portanto, o cultivo e isolamento viral tem que ser realizado apenas em laboratórios de Nível de Biossegurança 4. Diante da avaliação crítica em relação à Biossegurança e Biocontenção, o Instituto Evandro Chagas/SVS/MS (Laboratório de Referência Nacional para Febres Hemorrágicas Virais) poderá realizar apenas o diagnóstico molecular através de técnica convencional e o sequenciamento do genoma viral, uma vez que possui um Laboratório de Nível de Biossegurança 3 (NB3), com aporte de uma cabine de segurança Classe III (que são normalmente usadas em laboratórios de biossegurança 4) e profissionais de saúde com treinamentos específicos para a realização desses exames.
Tratamento
O tratamento é de suporte, conforme os sintomas do paciente. Tem-se utilizado a ribavirina para o tratamento de casos provocados pelo vírus da febre do Lassa, sendo mais eficaz quando aplicada precocemente. Acredita-se que outros arenavírus também são sensíveis a esse antiviral.
Casos suspeitos devem ser informados aos serviços de vigilância locais e o nacional. Os profissionais envolvidos no cuidado com o paciente e no diagnóstico do vírus estão sendo monitorados.
Como os pesquisadores do Einstein descobriram novo vírus no Brasil
Os sintomas do paciente levavam a crer que era febre amarela: estava febril, com hemorragia e confusão mental, além de hepatite, que pode ocorrer como uma complicação da febre amarela, doença causada por um vírus transmitido pelo mosquito Aedes Aegypti. Além disso, a época, virada do ano, corresponde ao período em que geralmente começam os surtos da enfermidade. Vindo do interior de São Paulo, o homem de 52 anos havia sido transferido para o Hospital das Clínicas de São Paulo (HC/SP). Tinha passado férias em Eldorado, no Vale do Ribeira, no Sul do estado de São Paulo. Para chegar a um diagnóstico conclusivo, a equipe de médicos do HC/SP enviou amostras de sangue para o laboratório do Hospital Israelita Albert Einstein, em São Paulo.
As duas instituições e mais de uma dezena de centros de referência no país participam do projeto Estudo das características epidemiológicas e clínicas das hepatites virais agudas em serviços de saúde brasileiros, do Ministério da Saúde, por meio do programa PROADI-SUS. No Einstein, todos os exames de sorologia e biologia molecular previstos pela iniciativa para pesquisas de agentes patogênicos envolvidos com o quadro foram empregados. Deram negativo. Então, resolveu-se utilizar um novo método desenvolvido pelo hospital paulistano que não está previsto inicialmente no projeto: o viroma/metagenômica. Isso porque os médicos do HC continuavam sem um diagnóstico conclusivo. Graças a este teste chegou-se a um diagnóstico inesperado: um novo vírus estava por trás de todos os sintomas experimentados pelo paciente.
A nova técnica diagnóstica funciona da seguinte forma: na primeira etapa do teste, chamada de bancada, pega-se a amostra e extrai-se todo o material genético. Ele é encaminhado para sequenciadores, que fazem sua identificação e a leitura de suas bases nitrogenadas, as letrinhas A (adenina), C (citosina), T (timina) e G (guanina). Daí, gera-se um arquivo com elas. “Esse resultado vai para a etapa seguinte, a de bioinformática”, informa o bioinformata Deyvid Amgarten, que participa da pesquisa. Pega-se essa sequência, que é como se fosse um código de barras para cada organismo, e busca-se um match nos bancos de dados, uma correspondência com o material genético depositado ali por outros pesquisadores do mundo todo.
Foi nessa fase que se identificou um arenavírus. O resultado surgiu na tela do computador de Amgarten no dia 14 de janeiro: Mammarenavirus, gênero dos vírus da família Arenaviridae. Assim que viu a informação, correu para avisar via WhatsApp o médico João Renato Rebello Pinho, coordenador do laboratório de técnicas especiais do Einstein, e sua colega, a biomédica Fernanda Malta, responsável por realizar as reações do viroma. Rebello alertou de pronto o time do HC devido à importância do achado. O teste criado pelos pesquisadores é capaz de detectar vírus responsáveis por diversos males, como hepatites, sarampo, rubéola, dengue, Chikungunya, febre amarela, sarampo, caxumba e aids. Não só vírus: bactérias e parasitas também. Isso porque analisa o RNA desses microrganismos.
Os arenavírus são vírus conhecidos por infectar roedores e, ocasionalmente, seres humanos e outros animais. Seus sintomas variam, mas se manifestam de forma muito parecida com os da febre amarela. Podem ser transmitidos via contato com mucosas de pessoas infectadas e causam uma enfermidade de alto risco de morte. Por isso, ele é classificado como nível máximo de biossegurança pelas agências de vigilância sanitária. A principal precaução é não entrar em contato com urina e fezes de ratos e roedores.
O último micro-organismo dessa, digamos, família viral, foi identificado no Brasil em 1994 no Jardim Sabiá, em Cotia, no interior de São Paulo. Daí a alcunha Sabiá arenavírus. Uma mulher morreu devido à infecção. Como suspeita-se que o paciente do HC tenha sido contaminado por outro tipo do clã Mammarenavirus em Eldorado, a descoberta foi batizada de Eldorado arenavírus. Amostras dele serão encaminhadas para o Centers for Diseases Control and Prevention (CDC), nos Estados Unidos, um dos principais centros epidemiológicos do mundo e também um dos poucos a dispor de laboratório com nível de segurança 4, onde ficam armazenados amostras dos vírus potencialmente letais. Exemplares de Ebola, por exemplo, ficam lá.
O novo teste de diagnóstico, semelhante a outros já utilizados no exterior, promete mudar a rotina de identificação dos agentes infecciosos. “O raciocínio clínico atualmente é pesquisar um por vez”, diz Rebello Pinho. “Queremos tentar implementar esse novo teste como um substituto de vários outros.” Dessa forma, rastreiam-se diversos micro-organismos de uma vez só. “Sabemos que vírus e agentes patogênicos podem causar doenças muito parecidas. É muito difícil para um médico determiná-las.” Sem falar na economia de custos. Ele continua: “Estamos propondo no Einstein em casos muito graves partir para esse teste mais amplo e, assim, identificar o micro-organismo por trás da doença e indicar o tratamento rapidamente.”
O exame é mais um exemplo da medicina de precisão, que chega ao alvo do problema. “Colhemos a amostra do paciente, investigamos e temos um dado preciso e personalizado”, fala Deyvid Amgarten. O método segue as regras do College of American Pathologists, acreditação contratada pelo Einstein que atesta a qualidade dos testes. Os resultados hoje saem em até 15 dias, mas a intenção é chegar a quatro ou cinco. “Nossa proposta não é só realizar testes para pesquisa. É fazer também exames que sejam úteis, de rotina”, diz Rebello Pinho. A descoberta do Eldorado arenavírus será tema de um artigo em um periódico científico internacional com impacto.
(Fonte: Agência Einstein)