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“Não sabemos se o Brasil terá a segunda onda da Covid-19″

Na opinião do cardiologista Márcio Sommer Bittencourt, do Hospital Israelita Albert Einstein e pesquisador da Clínica Epidemiológica do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo, País já vive alto e constante platô de casos

04/11/2020 10h30 Atualizado há 3 anos

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Por Cristiane Bomfim, da Agência Einstein

Depois de uma queda significativa no número de casos e óbitos por Covid-19, a Europa vive uma segunda onda de Covid-19 que, novamente se espalha de forma rápida. Países como França e Alemanha já retomaram medidas de controle, como o Lockdown, para conter algo que já era previsto e esperado pela comunidade médica.

“Apesar das diferenças entre si, os vírus respiratórios têm um padrão recorrente de comportamento e as pandemias, também. Se avaliarmos as principais oito pandemias deste tipo desde 1700, vamos notar que pelo menos sete tiveram mais do que uma onda em alguma parte do mundo”, afirma o cardiologista e médico do Hospital Israelita Albert Einstein e pesquisador da Clínica Epidemiológica do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo.

Em conversa com a Agência Einstein, o médico explica quais devem ser as principais causas da segunda onda do vírus pelo mundo e como medidas de intervenção diminuem o alastramento e agravamento da doença no Brasil.

Agência Einstein – Alemanha e França anunciaram novo lockdown, criando grande impacto nos mercados financeiros e, de novo, assustando a população. Imaginava-se que a segunda onda viria?

Márcio S. Bittencourt – Sim, dava para imaginar que teria uma segunda onda. É simplesmente fazer uma avaliação histórica pregressa de outras pandemias. Apesar das diferenças entre si, os vírus respiratórios têm um padrão recorrente de comportamento e as pandemias, também. Se avaliarmos as oito principais pandemias deste tipo desde 1700, notamos que ao menos sete tiveram mais que uma onda em alguma parte do mundo. Isso aconteceu com a Gripe Russa (de 1889 a 1890), com a Gripe Espanhola (entre 1918 e 1919), com a Gripe Asiática (de 1957 a 1958), a Gripe de Hong Kong (em 1968 e 1969), e, mais recentemente, a Gripe Suína (em 2009). Vale destacar que as pandemias anteriores foram por influenza e talvez nem todas as correlações ocorram da mesma forma.

Agência Einstein – O que explicaria a segunda onda na Europa?

Márcio S. Bittencourt – Segundas ondas são caracterizadas pelo aumento do número de casos, internações ou óbitos por uma determinada doença depois de uma queda importante e um controle por um período em região geográfica delimitada. Mas não há uma definição formal de quanto deve cair e por quanto tempo a doença deve estar controlada antes do novo aumento para definir a segunda onda.  Uma segunda onda pode ocorrer por vários motivos, mas os principais são comportamento humano, que quer dizer: como estamos lidando com o vírus e sazonalidade. Outros fatores como número de pessoas suscetíveis, duração de imunidade e mutações do vírus são outras possíveis explicações menos prováveis para uma segunda onda.

O mais provável é que seja uma combinação de ações de intervenção – como medidas de isolamento físico – que não foram suficientemente capazes de controlar a evolução do vírus ou foram interrompidas de forma precoce ou agressiva – com a questão da sazonalidade do vírus, que aparentemente se transmite com mais facilidade nas mesmas épocas que o vírus da gripe. Na Europa, por exemplo, os picos são no outono e inverno. Já no Brasil, varia de acordo com a região: no Norte e Nordeste em períodos mais chuvosos, no Sudeste e no Sul nas estações mais frias.

Outras razões são a heterogeneidade da população e a imunidade temporária. Um exemplo para a heterogeneidade é o de uma população que ficou em casa e se protegeu contra o vírus durante a primeira onda e que pode estar na rua nesse momento e se contaminar. E sobre a imunidade, ainda não sabemos por quanto ela dura em quem já teve a doença.

Agência Einstein – A variação do vírus Sars-CoV-2 que começou a circular no verão europeu e virou notícia nos últimos dias poderia ser também uma das causas dessa segunda onda?

Márcio S. Bittencourt – Do ponto de vista teórico, uma mutação do vírus pode levar a uma nova onda, já que as variações, por terem características próprias, podem ser mais transmissíveis do que as outras ou mais ou menos agressivas. No entanto a evidência atual não sugere esta seja a explicação para o que está acontecendo na Europa. Há várias mutações do vírus mundo e isso é comum e até agora não tem sido o motivo do aumento de casos, gravidade ou reinfecção. A soma de fatores comportamentais e sazonalidade são mais importantes para explicar esta segunda onda do novo coronavírus.

Agência Einstein – Os governos são responsáveis por esta segunda onda?

Márcio S. Bittencourt – Os governos que negaram a gravidade da doença e se recusaram a fazer intervenções, como Estados Unidos, México e Brasil, no nível federal, têm responsabilidade pelos elevados casos de doentes e de mortes. Mas como eu disse, são muitos fatores que contribuem para uma segunda onda e não podemos responsabilizar governos que criaram medidas e implementaram estratégias de contenção desde que as intervenções estejam sendo ajustadas para minimizar a piora do surto. Por exemplo, países como Noruega e Alemanha tiveram estratégias prudentes, com a realização de ampla testagem e medidas para reduzir a chance de disseminação da doença como isolamento de casos, quarentena de contatos, utilização de medidas de bloqueio além de medidas como fechamento de comércio, restaurantes e bares. Apesar de estar ocorrendo uma segunda onda na Alemanha, a taxa de internações e óbitos é menor que em países vizinhos, e a intensificação das medidas deve ajudar no controle. No entanto, acredito que Taiwan seja o melhor exemplo de quem fez a melhor implementação de todas as medidas. Com 23 milhões de habitantes, o país teve cerca de 500 casos confirmados de Covid-19 e sete mortes. Eles não tiveram a segunda onda e já flexibilizaram as medidas de distanciamento e estão há 200 dias sem transmissão local.

Agência Einstein – Teremos segunda onda no Brasil?

Márcio S. Bittencourt Não é possível responder com certeza se teremos uma segunda onda. No Brasil ainda não ocorreu uma queda sustentada no número de casos de contaminação, estamos num platô. É possível que tenhamos uma segunda onda nos períodos de transmissão mais intensa de vírus respiratórios no Brasil no ano que vem. Apesar disso, se uma proporção grande da população já tiver sido infectada, esta segunda onda pode não ser intensa, ainda mais se continuarmos com uma transmissão intensa na comunidade até lá.

Mas, se a segunda onda ocorrer, a intensidade e gravidade do surto dependerão da nossa capacidade de aplicar medidas de intervenção e controle de forma mais intensa e adequada que na primeira onda.

Agência Einstein – A possibilidade de termos uma vacina no ano que vem também pode nos ajudar a evitar essa nova onda?

Márcio S. Bittencourt – Projeções de resultados de estudos de vacinas e dos programas de implementação são difíceis de serem feitas. Pessoalmente, eu acho pouco provável que tenhamos um programa de vacinação amplo para toda a população no primeiro semestre de 2021. E explico o motivo: o processo de desenvolvimento, produção e distribuição de uma vacina é longo e complexo, não basta apenas comprovar que a vacina funciona.

Primeiro, precisamos mostrar que ela funciona. Depois, que ela é segura. O passo seguinte é a aprovação da vacina no país de origem e depois no Brasil pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária). Depois, ela precisa ser produzida em grande escala e comprada pelo poder público. Os laboratórios têm capacidade limitada de produção e todos os países estão procurando fechar a compra de grandes quantidades, receberá vacina quem comprar primeiro.

Depois disso, temos a questão de logística: a maior parte das vacinas precisa ser distribuída para todo o Brasil em veículos refrigerados. Ainda, para a maioria delas a imunização será feita em duas doses por pessoa. Ou seja, é preciso ter controle se as pessoas tomaram as duas doses para garantir que elas estejam protegidas e é preciso garantir que quem tomou a primeira dose retornará ao serviço de saúde para a dose suplementar. Por vim, precisamos fazer com que a população procure o atendimento para receber a vacina.

Além disso, não sabemos quais nem quantas das vacinas em teste vão funcionar, pois elas ainda estão sendo testadas.

Agência Einstein – Como o Brasil poderá enfrentar uma segunda onda, considerando que o sistema de saúde ainda terá de lidar com a sobrecarga causada por pacientes com outras doenças cujo atendimento foi represado durante o pico da pandemia?

Márcio S. Bittencourt – O peso pode ser muito grande caso não haja intervenções sérias para o controle da doença – como testagem em massa, fechamento ou restrição de espaços, distanciamento físico, isolamento de casos, quarentena de contatos e medidas de bloqueio como máscaras e higienização das mãos.

As pessoas imaginam que é só uma questão de ter ou não leitos de UTI nos hospitais para as pessoas com Covid-19. Mas temos que lembrar que antes do novo coronavírus, estes leitos já eram ocupados por pessoas com outras doenças graves ou pós cirurgias. Quando os leitos de UTI são ocupados majoritariamente por pacientes Covid-19, alguém está deixando de ser atendido, pode ser uma pessoa que sofreu um infarto, um AVC, um acidente ou alguma cirurgia que está sendo suspensa ou adiada. Estes remanejamentos impactam todo o sistema de saúde, desde os atendimentos mais simples até os mais críticos. Cria-se um gargalo que leva tempo para reorganizar. Para você ter uma ideia eu estou atendendo agora pacientes que tinham consultas marcadas para março e que foram canceladas.

(Fonte: Agência Einstein) 

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